O Produto é o Excremento da Ação
Dias de Guerra, Noites de Amor
CrimethInc
(Original em Inglês)
Honestamente, quando foi a última vez que você passou um dia inteiro apenas aproveitando o que você estava fazendo e sentindo? Aproveitando exclusivamente para o seu próprio prazer, sem pensar no futuro ou se preocupar com as conseqüências à longo prazo? Quando foi a última vez que você gastou um mês inteiro vivendo desse jeito? É difícil esquecer as suas responsabilidades, os seus objetivos, a sua produtividade, e apenas estar no presente?
Hoje em dia, as nossas vidas giram em torno de coisas. Medimos o nosso valor de acordo com as nossas posses materiais: de acordo com o controle sobre coisas externas a nós mesmos. Medimos o nosso sucesso na vida de acordo com a nossa "produtividade", que é a habilidade de fazer essas coisas. O nosso sistema social, mais do que qualquer coisa, gira em torno da produção e do consumo de bens materiais, representamos as nossas vidas como coisas para nós mesmos: consideramos as nossas realizações, probabilidades para o futuro, posição social... tudo menos como realmente nos sentimos. "Os fins justificam os meios", dizemos; isto é, os produtos das nossas ações, o resultado final das nossas vidas, são mais importantes para nós do que o próprio processo de viver.
Mas os produtos são o excremento das nossas ações. Produto é o que resta quando a poeira baixa e a pulsação volta ao normal, quando o dia acaba, quando o caixão é depositado no solo. Nós não existimos na poeira abaixada ou no resultado final. A sociedade moderna está centralizada em torno da produção e distribuição de bens materiais, ao invés da felicidade e satisfação de seus participantes. Desse modo O homem moderno considera a sua vida de acordo com o que tem a oferecer, ao invés de considerar a vida por si própria.
Estamos aqui no tempo presente, no fazer, e no sentir. Assim como tentamos nos imortalizar fugindo para o mundo das imagens fixas e imortais, tentamos nos exteriorizar pensando de acordo com os resultados das nossas ações, ao invés da nossa experiência com as próprias ações. Além do que, é bastante complicado ter que se preocupar se você está realmente se divertindo, ou como você está se sentindo no momento. É mais fácil focar-se nos resultados, a forte evidência da sua vida; essas coisas parecem mais fáceis de se entender e mais fáceis de se controlar.
Lógico que o trabalhador médio de hoje em dia está acostumado a pensar muito mais sobre os fins do que os meios. Ele gasta a maior parte do seu tempo e energia trabalhando em um emprego que provavelmente não satisfaz os seus sonhos. Ele espera pelo pagamento todo mês, pois ele conta com o cheque para isso tudo ter algum sentido em sua vida: sem isso, ele se sentiria como se estivesse perdendo seu tempo. Se ele não olhasse para as "conseqüências" das suas ações como uma forma de justificá-las, a sua vida seria insuportável - o que aconteceria se constantemente considerasse seus sentimentos enquanto está ensacando mantimentos, ou perguntasse a si mesmo se está se divertindo enquanto briga com um fax que não quer funcionar. Na medida que a sua experiência diária de vida é tediosa e sem sentido, ele precisa se concentrar no próximo final de semana, nas próximas férias, nas próximas compras, para evitar a loucura.
Consequentemente eles está obrigado a generalizar esse modo de pensar as outras áreas da sua vida: ele avalia possíveis ações de acordo com as recompensas que elas podem oferecer, do mesmo jeito que avaliaria um emprego pelo salário que oferece. Desse modo, o presente tem perdido quase toda a sua importância para o homem moderno. Ao invés disso ele passa a sua vida planejando o futuro: ele estuda por um diploma, ao invés da vontade de aprender; escolhe o seu trabalho por status social, riqueza e "segurança", ao invés do prazer pela atividade; economiza o seu dinheiro para grandes compras e viagens de férias, ao invés de comprar a sua saída da escravidão do trabalho assalariado, por uma liberdade em tempo integral. Quando se encontra experimentando uma profunda felicidade com outro ser humano, ele tenta congelar esse momento e transformá-lo em algo fixo casando-se. Aos domingos vai a Igreja, onde lhe dizem que deve fazer boas ações para merecer a salvação eterna (como Nietzsche disse, o bom cristão deseja ser bem pago), ao invés do puro prazer de ajudar os outros. O "aristocrático pouco caso pelas conseqüências", a habilidade para agir pela ação que os heróis possuem, está muito além dele.
É um clichê que homens e mulheres de meia idade da classe média dificilmente colocam de lado as suas apólices de seguro e seus programas de investimento para tentar entender o agora; mas, quase sempre, também acabamos por trocar o presente pelo futuro e a experiência por souvenirs. Guardamos lembranças, troféus, caixas de presentes, cartas velhas, como se a vida pudesse ser juntada, armazenada e congelada para depois... para depois? Para quando? A vida está aqui conosco agora, passando por nós como um rio; e como um rio ela não pode ser represada sem perder sua magia. Quanto mais tempo gastarmos tentando "preservá-la", menos tempo teremos para nela mergulhar.
Os piores de nós, de fato, são os radicais e artistas. Muito freqüentemente, nós "revolucionários" empregamos nossos esforços pensando e discutindo sobre a revolução que "está por vir", ao invés de nos concentrarmos em fazer a revolução no tempo presente. Estamos tão acostumados a pensar em termos produção que mesmo quando tentamos fazer da vida algo imediato e excitante, ainda assim acabamos por centralizar os nossos esforços num evento futuro - um que provavelmente não vamos nem viver para ver. E como supervisores de uma fábrica, estamos muito mais preocupados como os números da nossa produtividade (a quantidade de novos simpatizantes recrutados, o progresso da "causa", etc...) do que com a forma que nós e nossos companheiros humanos nos sentimos e vivemos.
Os artistas são os que mais sofrem essa tendência, pois a sua própria vocação depende de fazer produtos do material bruto da experiência da vida real. Há algo da sede capitalista por dominação no modo como os artistas moldam as suas próprias emoções e experiências, em formas de sua própria criação através do ato de expressão; pois a expressão de pensamentos e sensações, únicas e impenetráveis como são, sempre consiste em um tipo de simplificação. Não é simples para o artista apenas experimentar e apreciar a vida como ela realmente é; ele tem que remontar a sua vida para o que for realmente uma obra, uma série de produtos exteriores a ele, até mesmo ajustando a sua vida de acordo com a sua obra. Pior, ele pode achar que ele não pode fazer amor telhado durante o nascer do sol sem planeja a excelente cena para o seu romance (excremento!) que isso será.
Certamente, a excreção é uma função saudável e necessária do corpo e da mente e há um lugar para a arte em nossas vidas como um modo de vazar os sentimentos de volta para o mundo quando o coração estiver quase transbordando, mas se você continua fazendo isso quando já não é mais necessário, consequentemente você força o seu coração e o resto das suas entranhas (você se lembra do conto de fadas da galinha dos ovos de ouro?). Devemos colocar a vida e a experiência em primeiro lugar e encontrarmos o mundo com apenas isso em mente, tão frescos e inocentes como quando éramos crianças, sem intenções de tornar remontar, classificar, organizar ou simplificar a profunda infinidade das nossas experiências. Caso contrário, perdemos o que é mais vital, mais bonito e mais imediato nesse mundo em nossa busca por coisas que possam ser compactadas e preservadas eternamente. "A imaginação deveria ser usada em primeiro lugar para transformar a realidade do dia-a-dia, não apenas para fazer representações simbólicas dela." De qualquer forma, quantos romances excitantes poderiam ser escritos sobre o tipo de vida que a maioria de nós vive hoje em dia? Façamos do viver a nossa arte, ao invés de procurar emitir mera arte das nossas vidas.
Se por acaso acharmos felicidade, será no processo de viver, de fazer o que quisermos e vivenciar os nossos sonhos. Se não pararmos e aproveitarmos o presente agora, quando o faremos?
Então vamos parar de "fazer história" - estamos todos tão obcecados em "deixar uma marca" - e vamos começar a viver. Isto seria a verdadeira revolução.
Vamos viver para o hoje, para nossas vidas, não para os nossos "resultados"!
"Mas eu vou te dizer Henri, que cada momento que você rouba do presente é um momento que você perdeu para sempre. Existe apenas o agora"
John (Fire) Lame Deer
Antes dos seus irmãos brancos chegarem para nos tornarem homens civilizados, nós não tínhamos nenhum tipo de prisão. Por causa disso, nós não tínhamos delinquentes. Sem uma prisão não pode haver delinquentes. Nós não tínhamos trancas ou chaves e e consequentemente entre nós não havia ladrões. Quando alguém era tão pobre que não poderia ter um cavalo, uma barraca ou um cobertor, ele iria, nesse caso, receber tudo isso como presente. Nós éramos muito não-civilizados pra dar importância para a propriedade privada. Nós conhecíamos nenhum tipo de dinheiro e consequentemente o valor de um ser humano não era determinado pela sua riqueza. Nós não tínhamos leis estabelecidas, nem advogados, nem políticos, portanto nós não podíamos enganar ou fraudar uns aos outros. Nós estávamos realmente numa má condição antes do homem branco chegar e eu não sei como explicar como nós éramos capazes de nos manter sem essas coisas fundamentais que (assim eles nos dizem) são tão necessárias para a sociedade civilizada.
Êxtase e Intoxicação – Crimethinc.
Êxtase e Intoxicação - Por um mundo de encantamento ou anarcoolismo?
Chapado, bem louco, breaco, lesado, travado, manguaçado, estragado, detonado, trêbado[1].
Todo mundo já ouviu sobre as pessoas do Ártico com cem palavras para neve; nós possuímos cem palavras para bêbado.
Nós perpetuamos nossa própria cultura de derrota.
Pare aí mesmo – eu posso ver o sorriso desdenhoso em sua face: são esses anarquistas tão irritados que eles denunciariam até o único aspecto divertido do anarquismo – a cerveja após as badernas, a bebida alcoólica no bar onde todos aqueles desejos inalcançáveis[2] são espalhados? O que eles fazem para se divertir, em suma – divulgando calúnias sobre a pequena diversão que nós temos? Nós não podemos relaxar e ter um bom momento em nenhuma parte de nossas vidas?
Não nos entendam mal: não estamos argumentando contra a satisfação, mas a favor disto. Ambrose Bierce definiu um asceta como “uma pessoa fraca que sucumbe à tentação de negar prazer a si mesmo” e nós concordamos. Assim como Chuck Baudelaire escreveu, você deve sempre estar alto – tudo depende disso. Portanto, não somos contra a embriaguez, mas, de fato, contra beber! Aqueles que abraçam a bebida como caminho para a embriaguez enganam a si mesmos para uma vida de total encantamento.
Beber, assim como cafeína ou açúcar no corpo, apenas desempenha um papel na vida que a vida ela mesma providencia de outra maneira. A mulher que nunca bebe café não o requer na manhã quando acorda: seu corpo produz energia e foco por si mesmo, assim como milhares de gerações de evolução o prepararam para fazer. Se ela bebe café regularmente, logo seu corpo deixa o café tomar conta deste papel, e ela vira dependente dele. Da mesma maneira, o álcool provê artificialmente momentos temporários de relaxamento e libertação enquanto empobrece a vida de tudo o que é genuinamente relaxante e libertador.
Se algumas pessoas sóbrias nessa sociedade não parecem tão despreocupadas e livres como suas contrapartes bêbadas, isso é um mero acidente cultural, mera evidência circunstancial. Esses puritanos existem todos iguais no mundo, esvaziados de toda mágica e capacidade pelo alcoolismo de seus colegas (e o capitalismo, hierarquias e miséria que ele ajuda a manter) – a única diferença é que eles são tão abnegados até para recusar a falsa mágica, o gênio na garrafa[3]. Mas outras pessoas “sóbrias”, cuja orientação de vida pode ser mais bem descrita como encantada ou extática, são abundantes, se você olhar bem o suficiente. Para estes indivíduos – para nós – a vida é uma constante celebração que não precisa de acréscimo, da qual não necessitamos de repouso.
Álcool, como Prozac e todos os outros medicamentos controladores da mente que estão gerando muito dinheiro para o “grande irmão” hoje em dia, substitui a cura por tratamento de sintomas. Ele tira a dor de uma existência maçante e monótona por algumas horas, no melhor dos casos, então a devolve em dobro. Ele não apenas substitui ações positivas que poderiam localizar as causas de nosso desânimo – ele as previne, quando mais energia torna-se focada em obter e recuperar-se do estado alcoolizado. Como o turismo do trabalhador, beber é a válvula de escape que libera tensões enquanto mantêm o sistema que as criou. Nessa cultura de “apertar botão”, nós nos acostumamos a conceber a nós mesmos como simples máquinas a serem operadas: adicione o químico apropriado à equação para obter o resultado desejado. Em nossa busca por saúde, alegria, sentido da vida, fugimos de uma panacéia para a próxima – Viagra, vitamina C, vodka – ao invés de abordar nossas vidas holisticamente e localizar nossos problemas em suas raízes sociais e econômicas. Essa atitude orientada por produtos é o fundamento de nossa alienada sociedade consumista: sem consumir produtos não podemos viver! Tentamos comprar relaxamento, comunidade, autoconfiança – agora até o êxtase vem em uma pílula!
Nós queremos êxtase como um modo de vida, não uma festividade alcoólica envenenadora de fígado[4]. “A vida é um saco – fique bêbado” é a essência do argumento que entra em nossos ouvidos vindo da língua de nossos senhores e então sai de nossas próprias bocas, perpetuando quaisquer que sejam as verdades incidentais e desnecessárias a que possa se referir – mas nós não vamos mais cair nessa! Contra a enebriação – e pela embriaguez! Acabem com todas as lojas de bebida e as substituam por parques de diversão!
Por uma embriaguez lúcida e uma sobriedade de êxtase!
Rebelião Falsa
Praticamente todas as crianças nas sociedades ocidentais mais costumeiras crescem com o álcool como a fruta proibida cujo prazer seus pais ou amigos se permitem mas proíbem para elas. Esta proibição apenas torna o beber mais fascinante para as pessoas jovens e, quando elas possuem a oportunidade, quase imediatamente expressam suas independências fazendo exatamente como foram avisados para não fazer: ironicamente, eles se rebelam seguindo o exemplo colocado para eles. Este modelo hipócrita é o padrão de criação de crianças nessa sociedade, e funciona para replicar o número de comportamentos destrutivos que de outro modo seriam agressivamente recusados por novas gerações. O fato de que a falsa moralidade de muitos pais que bebem é espelhada na prática devota de grupos religiosos ajuda a criar a falsa dicotomia entre a abnegação puritana e bebedores livres amantes da vida – com “amigos” como pastores batistas, nós abstêmios queremos saber: quem precisa de inimigos?Esses partidários da embriaguez rebelde e advogados da abstinência responsável são adversários leais. O primeiro precisa do último para fazer seus rituais sombrios parecerem divertidos; e o último precisa do
primeiro para fazer sua rígida austeridade parecer senso comum. Uma “sobriedade extática” que combata a melancolia de um e a confusão do outro – falso prazer e falsa ponderação da mesma forma – é análoga ao anarquismo que confronta tanto a falsa liberdade oferecida pelo capitalismo quanto a falsa comunidade oferecida pelo comunismo.Álcool e Sexo na Cultura do EstuproVamos colocar para a discussão: quase todos nós vimos de um lugar onde nossa sexualidade é ou foi território ocupado. Fomos estuprados, abusados, assaltados, humilhados, silenciados, confundidos, construídos, programados. Estamos de mau-humor e voltando atrás, recuperando a nós mesmos; mas para a maioria de nós, esse é um lento, complexo e ainda não concluído processo.Isso não significa que não possamos fazer sexo bom e seguro agora mesmo, no meio desta cura – mais torna fazer sexo um pouco mais complicado. Para estar certo de que não estamos perpetuando ou ajudando a perpetuar padrões negativos em uma vida de amante, devemos ser capazes de nos comunicar claramente e honestamente antes que as coisas fiquem quentes e densas – e enquanto são e depois. Poucas forças interferem nisso como o álcool. Nessa cultura da negação, somos encorajados a usá-lo como um lubrificante social para nos ajudar a deixar no passado nossas inibições; muito frequentemente, isso simplesmente significa ignorar nossos próprios medos e cicatrizes e não perguntar sobre os outros. Se é perigoso, assim como bonito, para nós compartilhar o sexo com outra pessoa sóbrio, quão mais perigoso deve ser fazer isto tão bêbado, afobado e incoerente? Falando de sexo, é notável o papel que o álcool possui na sustentação das dinâmicas patriarcais. Por exemplo – em quantos núcleos familiares o alcoolismo ajudou a manter uma distribuição desigual de poder e pressão? (Todos os escritores deste panfleto podem se lembrar de mais de um caso entre seus parentes). A autodestruição do homem bêbado, produzida, como pode ser, pelos horrores de viver sob o capitalismo, impõe até mais peso sobre a mulher, que deve ainda, de alguma forma, manter a família unida – constantemente em face da violência dele. E na questão das dinâmicas...A Tirania da Apatia“Todo maldito projeto anarquista em que me engajo é arruinado ou quase arruinado pelo álcool. Você
monta uma situação de vida coletiva e todos estão muito bêbados ou chapados para fazer as tarefas básicas, sem falar em manter uma atitude respeitosa. Você quer criar comunidade, mas após o show todos apenas voltam para seus quartos e bebem até a morte. Se não se abusa de uma substância, se abusa de alguma outra. Eu entendo que tentar apagar sua consciência é uma reação natural a ter nascido no alienante inferno capitalista, mas eu quero que as pessoas olhem para o que nós anarquistas estamos fazendo e digam “sim, isso é melhor que o capitalismo!”... o que é difícil de dizer se você não consegue andar sem pisar sobre garrafas quebradas. Eu nunca me considerei um straight-edge, mas foda-se, eu não vou mais continuar com isto!”Já foi dito que quando o famoso anarquista Oscar Wilde ouviu pela primeira vez o velho slogan se é humilhante ser governado, quão mais humilhante é escolher seu governante, respondeu: “se é humilhante escolher o controlador de alguém, quão mais humilhante é ser o próprio controlador de alguém!”[5]. Ele pretendia que isso fosse uma crítica às hierarquias dentro de si próprio assim como no estado democrático, com certeza – mas, tristemente, seu sarcasmo pode ser aplicado literalmente ao modo como alguns de nossos esforços em criar ambientes anarquistas são concluídos na prática. Isso é especialmente verdade quando eles são executados por pessoas bêbadas.Em certos círculos, especialmente naqueles em que a palavra “anarquia” ela mesma é mais costumeira do que qualquer de seus vários significados, liberdade é concebida em termos negativos: “não me diga o que fazer!”. Na prática, isso frequentemente significa nada mais do que uma declaração do direito individual de ser preguiçoso, egoísta, irresponsável por seus atos. Nestes contextos, quando um grupo concorda sobre um projeto, frequentemente acaba sendo uma pequena minoria responsável que precisa fazer todo o trabalho para que ele aconteça. Estes poucos conscienciosos frequentemente parecem despóticos – quando, invisíveis, são a apatia e hostilidade de seus camaradas que os forçam a adotar esse papel. Ser bêbado e desordeiro todo o tempo é coercitivo – força os outros a clarear as coisas por você, a pensar claramente quando você não o fará, a absorver o estresse gerado pelo seu comportamento quando você está muito detonado para um diálogo. Essas dinâmicas vão em duas direções, com certeza – aqueles que assumem toda a responsabilidade em seus ombros perpetuam o padrão em que todos os outros não assumem nenhuma – mas todos são responsáveis por sua própria parte em tal padrão, e em transcendê-lo.
Pense no poder que podemos ter se toda a energia e esforço no mundo – ou talvez apenas sua energia e esforço – que são usadas para beber fossem colocadas em resistência, construção, criação. Tente adicionar a isso todo o dinheiro que os anarquistas de sua comunidade gastaram em beber coletivamente e imagine quanto equipamento musical, dinheiro para fianças ou comida (-not-bombs[6]... ou, foda-se, bombas!) poderiam ter pago – ao invés de financiar suas guerras contra todos nós. Melhor: imagine viver em um mundo onde presidentes viciados em cocaína morrem de overdose enquanto músicos radicais e rebeldes vivem até uma velha e madura idade!Sobriedade e SolidariedadeComo em qualquer escolha de estilo de vida, seja vagabundagem ou sindicato, abstenção de álcool pode às vezes ser confundida com um fim, ao invés de um meio.Acima de tudo, é importante que nossas próprias escolhas não sejam um pretexto para nos acharmos superiores aos que fazem escolhas diferentes. A única estratégia para compartilhar boas idéias que infalivelmente obtém sucesso (e isto se aplica aos panfletos cabeça-quente como este também!) é o poder do exemplo – se você colocar a “sobriedade extática” em ação em sua vida e isso funcionar, aqueles que sinceramente querem coisas similares irão se unir. Julgar os outros por decisões que afetam apenas a eles mesmos é absolutamente nocivo a qualquer anarquista – sem mencionar que isso faz deles menos passíveis de experimentar as opções que você oferece.E então – a questão da solidariedade e comunidade com anarquistas e outros que usam álcool e drogas. Propomos que estes são de extrema importância. Especialmente no caso daqueles que estão lutando para libertar a si mesmos de dependências não desejadas, tal solidariedade é suprema: Alcoólicos Anônimos, por exemplo, é apenas mais um exemplo de uma organização quase religiosa satisfazendo uma necessidade social que deveria já ser fornecida pela comunidade anarquista auto-organizada. Como em todo caso, nós anarquistas devemos nos questionar: tomamos nossas posições simplesmente para nos sentir superiores às massas vulgares – ou porque sinceramente desejamos propagar alternativas acessíveis? Ainda, muitos de nós que não somos dependentes de “substâncias” podemos agradecer nosso privilégio e boa sorte por isso; isto nos dá toda a responsabilidade a mais de sermos bons aliados daqueles que não possuem tal privilégio e sorte – ou seja lá quais termos eles usem. Deixe
a tolerância, humildade, acessibilidade e sensibilidade serem as qualidades que alimentamos em nós mesmos, e não o sentimento de superioridade moral ou orgulho. Não à sobriedade separatista!RevoluçãoEntão – o que vamos fazer se não formos aos bares, passarmos o tempo em festas, sentarmos nos degraus ou em frente à televisão com nossas garrafas? Qualquer outra coisa! O impacto social da fixação de nossa sociedade no álcool é ao menos tão importante quanto seus efeitos mentais, médicos, econômicos e emocionais. Beber padroniza nossas vidas sociais, ocupando algumas das oito horas por dia que não são já colonizadas pelo trabalho. Ele nos localiza espacialmente – salas, salões de coquetéis, caminhos – e contextualmente – em comportamentos ritualizados e previsíveis – das maneiras mais explicitas que o sistema de controle jamais pôde. Frequentemente, quando um de nós consegue escapar do papel de trabalhador/consumidor, beber está lá, um remanescente teimoso de nosso tempo de lazer colonizado, para preencher o promissor espaço aberto. Livre dessas rotinas, poderíamos descobrir outras formas de usar o tempo e energia e buscar prazer, formas que poderiam provocar riscos ao sistema de alienação.Beber pode ser incidentalmente parte de interações sociais positivas e estimulantes, é claro – o problema é que seu papel central na sociabilidade vigente o apresenta falsamente como o pré-requisito para tais relacionamentos. Isto obscurece o fato de que podemos criar tais interações por nossa vontade, com nada mais que nossa própria criatividade, honestidade e coragem. De fato, sem elas, nada de valor é possível – você já foi a uma festa ruim? – e com elas, nenhum álcool é necessário.Quando uma ou duas pessoas param de beber, isso parece sem sentido, como se eles estivessem destituindo a si mesmos da companhia (ou pelo menos dos hábitos) de seus companheiros humanos por nada. Mas uma comunidade de tais pessoas pode desenvolver uma radical cultura de aventura sóbria e engajamento, que pode eventualmente oferecer oportunidades excitantes de atividades sem bebida e alegria para todos. Os geeks[7] e solitários de ontem podem ser os pioneiros do novo mundo de amanhã: “embriaguez lúcida” é um novo horizonte, uma nova possibilidade para transgressão e transformação que poderia prover solo fértil para revoltas ainda inimagináveis. Como qualquer estilo de vida revolucionário, esse oferece uma amostra imediata de um outro mundo enquanto ajuda a criar um
contexto para ações que apressam sua realização universal.Não à guerra a não ser a guerra de classes – não aos coquetéis a não ser o coquetel molotov! Deixe-nos fermentar[8] nada além dos problemas!Posfácio: Como ler este panfletoCom alguma sorte, você foi capaz de discernir – até, talvez, através dessa névoa de torpor bêbado – que isto é tanto uma caricatura das polêmicas na tradição anarquista quanto uma peça séria. Vale a pena apontar que estas polêmicas têm frequentemente chamado atenção para suas hipóteses por tomar deliberadamente uma posição extrema, com isso abrindo terreno intermediário para posições mais “moderadas” sobre o assunto.Esperamos que você possa extrair discernimentos úteis por si mesmo de suas interpretações deste texto, ao invés de tomá-lo como um mandamento ou como algo amaldiçoado.E tudo isto não é para dizer que não há tolos que rejeitam intoxicar-se, mas você pode imaginar quão mais insuportáveis eles seriam se não rejeitassem? Os chatos seriam ainda chatos, mas mais escandalosos; os fanáticos continuariam a reprovar e fazer longos discursos, enquanto cuspiriam e babariam em suas vítimas! É uma característica quase universal dos bebedores que eles encorajam todos ao redor a beber e que – com exceção do jogo de forças hipócrita entre amantes ou pais e filhos, ao menos – eles preferem que suas próprias escolhas sejam refletidas nas escolhas de todos. Encontramos nisso um indicativo de uma insegurança monumental, não desvinculada da insegurança revelada por ideólogos e recrutadores de todo tipo, de cristão à marxista à anarquista que sinta que não pode descansar até que todos no mundo vejam este mundo exatamente como eles vêem. Enquanto lê, tente combater esta insegurança – e tente não ler isto como uma expressão de nós mesmos, tampouco. Mas, ao invés, na tradição dos melhores trabalhos anarquistas, como um lembrete para todos que escolhem se preocupar com que um outro mundo é possível.Retratação Previsível
Assim como no caso de todos os textos da Crimethinc., este representa apenas as perspectivas de quem concorda com ele neste momento, não a totalidade do CrimethInc. ex-Workers’ Collective ou qualquer outra massa abstrata. Alguém que faz importante trabalho sob o nome do Crimethinc. está provavelmente ficando bêbado no momento em que estou digitando isto – e está tudo bem!Notas[1] N. do T.: As gírias originais perdem o sentido na tradução. Os termos em inglês são: “Sloshed, smashed, trashed, loaded, wrecked, wasted, blasted, plastered, tanked, fucked up, bombed” [2] N. do T.: O texto usa aqui a expressão pie-in-the-sky theory. De acordo com o dicionário isto pode significar tanto falsa promessa quanto desejo inalcançável. O verbo a seguir ébandied, que pode significar tanto espalhar boatos, como alternar ou atirar de um lado para o outro.[3] N. do T.: Imagino que esta frase poderia ficar mais clara. No original está: Those puritans exist all the same in the world drained of all magic and genius by the alcoholism of their fellows (and the capitalism, hierarchy, misery it helps maintain) – the only difference is that they are so self-abnegating as to refuse even the false magic, the genie of the bottle.[4] N. do T.: A frase original é: We want ecstasy as a way of life, not a liver-poisoning alcoholiday from it. O termo alcoholiday diz respeito à alguma ocasião, como uma festa prolongada, um dia de feriado ou mesmo algum dia em que se falta no trabalho em que se bebe grandes quantidades de álcool.[5] N. do T.: “If it’s humiliating to choose one’s masters, how much more humiliating to be one’s own master!”[6] N. do T.: O texto provavelmente se refere ao grupo “Food Not Bombs”, que é um grupo de coletivos independentes que serve alimentação vegetariana às pessoas. Eles defendem a idéia de que as prioridades das corporações e do governo são distorcidas para permitir que a fome persista no meio da abundância. Para demonstrar isto (e reduzir custos), uma grande quantidade de comida servida pelo grupo é de restos de quitandas, padarias e mercados que iriam para o lixo. (adaptado da definição do site Wikipedia).
[7] N. do T.: Geek é uma gíria que define pessoas peculiares ou excêntricas. O uso mais comum refere- se à pessoas obcecadas por tecnologias, aparelhos eletrônicos e softwares. Porém, hoje, pode ser aplicada a outros tipos de pessoas diferentes da maioria e obcecadas pelos seus gostos, aproximando- se da definição de nerd.[8] N. do T.: A expressão original é Let us brew nothing but trouble!. Brew pode ser entendido tanto como remexer, misturar, como fermentar, fazer cerveja. A ambigüidade se perde na tradução. Mesmo a escolha por “fermentar” poderia ser substituída por “remexer”.Fonte:http://ecoveganismo.blogspot.com/2010/02/tr-anarquia-alcool.html